Carnaval, Malandragem e Marginais

Foi com prazer que recebi um e-mail de um interno da Colônia de Curitiba me agradecendo pelo que aprendeu e me contando que além de ter conseguido um papel  no filme está escrevendo um livro relatando essa experiência. Vou ajudar ele a organizar os capítulos.
O clima quente e seco. Um carnaval sem chuva. A crise mundial afetou as escolas de samba do Rio de Janeiro…
O Cinema brasileiro, não exclusivamente e nem em sua totalidade, tem retratado a realidade dura dos invisíveis, dos oprimidos, dos fudidos que vivem à margem da sociedade. Vejo mais denúncia que proposta. Gostamos de nos mostrar uma sociedade violenta, sem lei, sem saída e ainda assim cheio de criatividade. Reforçamos a tese de que o brasileiro é alegre por que é otário. O negócio é cada um pegar sua arma e se defender. 
A realidade dura da cadeia, o afastamento da sociedade, o sequestro do direito de ir e vir, o sequestro da individualidade podem parecer duros castigos para quem comete atos contra a sociedade, contra a integridade do coletivo e dos indivíduos mas é necessário para aliviar a tensão que a desordem causa sobre os indivíduos que fazem a sociedade. 
Na cadeia onde fui era proibido roubar, estuprar, olhar na direção do outro quando na presença dos seus familiares…ou seja na cadeia a vida é organizada de modo que não haja desordem. É uma ordem estabelecida à força e quem desobedece recebe castigo dos outros internos. A razão é que o sofrimento é tão grande lá dentro que entre eles é necessário achar meios para aliviar o mesmo.
Ironia é que esses Homens não conseguem fazer o mesmo aqui fora. Sabem que será necessário mas que a sociedade e nem eles possuem os meios físicos e espirituais (entenda tanto o espírito quanto a mente) para se manterem dentro das leis.
No mundo livre qualquer coisa vale para se alcançar o que se quer. A morte não é risco é saída, é alívio. Só doí quando se tem apego a ela, ao corpo. Quem toma uma arma sabe que pode morrer e isso muitas vezes consola e justifica seus atos. A violência tem carta branca por que assusta. Ninguém que lidar com ela mas a qualquer momento e de muitas maneiras podemos praticar a violência sem que soframos nada por isso. Isso acontece por estamos embotados e alienados de nós mesmos.
Quando estive na Bahia trabalhando nos Capitães da Areia tive o prazer de ouvir algo que me causou muita felicidade. Alguém ousou levantar a voz contra o Cidade de Deus de uma maneira brilhante. Era o Ranmsés meu assistente local e como já estávamos trabalhando algum tempo e ele sentiu confiança em confessar que ele sentia raiva ” de vocês que fizeram Cidade de Deus”. Sem espanto mas muito curioso queria saber a razão. Ele me contou que quando filme foi lançado ele estava trabalhando no projeto Caminhar, uma ONG que cuida da re-inserção social de jovens infratores, que dava aulas de sociabilização, que o trabalho era duro por que os meninos que haviam saído de reformatório muito machucados estavam estudando num quartel. Aprendiam e apreciavam a disciplina mas faltava o afetivo para conseguir aceitar os outros. Competiam entre eles quem seria o mais duro e a disciplina militar estimulava isso. Ranmsés tinha como missão colocar um pouco de flexibilidade nesses meninos. A pressão era grande sobre ele mas como estava conseguindo progresso ele se mantinha lá. Porém quando o filme chegou as esses jovens a metade chutou o balde e quis fazer como o Zé Pequeno. Pegar em armas e conquistar o mundo. Morrer no campo de batalha como fim honroso. Enfim seu trabalho ruiu.
Daí a raiva de nós que fizemos o filme. Fizemos e não nos questionamos sobre a mensagem. Era uma boa história e pronto. Mostramos nosso medo. E fomos medrosos. Não pensamos que a morte do Zé Pequeno era a sua redenção. Morrer para nós era o pior que podia passar. A mensagem que ficou é que a única justiça virá das armas e que entre pobres, marginais, favelados é assim. O único heroí é alguém que por acaso consegue uma foto maravilhosa que conta essa história. Denunciou e se deu bem. Roubou para o bem e conseguiu. Os meios não justificam os fins.
O filme é uma obra de arte mas também é sujeito ao seu tempo.
No processo do 400 contra 1 eu questionei o Caco Souza sobre o que ele quer dizer com esse filme. Por que estaríamos expondo pessoas e nós mesmos a isso se nós nunca fomos engajados na causa do presos do Brasil. Se na história verdadeira não há mensagem nenhuma e os personagens do  também só queriam a melhoria da sua situação dentro do presídio para poder voltar mais rapidamente para o mundo de fora e continuar assaltando.
Alguma voz pode dizer mas o que mais você espera? 
Eu não espero nada. Não acredito numa revolução coletiva e também reconheço que parte do que acontece é por minha culpa. Acredito em transformação. Acredito em ação. Acredito que é necessário confrontar conceitos, ter coragem para se reconhecer e aceitar o seu papel na sociedade. Há muito tempo nos fazemos de espertinhos para não exercermos nossa autoridade na sociedade. Botamos a culpa no ladrão, no favelado, no negro, no que rouba meu carro…e nos associamos a ele quando a história é boa. Elegemos nossos governantes para descer a lenha neles. Pagamos nossos impostos para achincalhar a polícia. 
Tudo isso tem um passado histórico. Aprendemos a nos desvalorizar enquanto sociedade. A trabalhar demais para segurar o emprego. A nos defender em grupo para manter nossos privilégios. A nos fazermos de vítima quando nos interessa.
Eu não consigo viver mais isso. Não sou ingênuo. Agir não é fechar os olhos e se jogar da ponte. Nesse momento de crise mundial aproveito para limpar a casa e queimar na fogueira mas conceitos inúteis, julgamentos sem fundamentos, preconceitos mortos. Quanto você se expõe enquanto pessoa pública mas responsabilidade você assume pelo que faz pela sociedade. Acasos não são mais permitidos. Nem panfletos.
Atuar é estar no centro do movimento, das ações, do conflito. O Ator é agente disso. Ele gera movimento. Ele deveria estar no centro ocupando um espaço mas parece que ainda não despertamos para isso.

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