Xingu

Nós, Marina Medeiros e eu, realizamos a preparação de atores do filme Xingu de Cao Hamburger. Ao lado dos atores experientes João Miguel, Caio Blat, Felipe Camargo estão Maiari, Awakari, Totomai, Dani Campeba… e muitos outros que com sua verdade, dignidade e entrega dão a dimensão do que é a questão do indígena no Brasil. Não é a primeira vez que se faz cinema com povos indígenas mas foi a minha primeira vez. Um trabalho complicado por parte da produção, tenso pela distância entre as realidades, e lindo pela convivência que tivemos.

Os comentários de um trabalho muito intenso.

Rompendo preconceitos

Revendo conceitos e reforçando convicções!

Textos que relatam  a minha versão da história.


Xingu – A Oficina

Acabo de chegar do Parque Indígena do Xingu preparando índios da etnia Kaiabi para participarem da produção do filme Xingu. Tanto no elenco principal quanto no elenco de apoio.

A história dessa etnia é muito importante para ilustrar a importância do Parque do Xingu para a população indígena. Eles são originários do Pará mas foram trazidos para o Xingu para que não desaparecessem pois a exploração econômica de suas terras ancestrais feita de invasões violentas e ataques a suas aldeias, representavam uma ameaça real a sua sobrevivência. Ali eles reconstruíram suas aldeias e refizeram suas vidas em terras menos ricas mas mais seguras. Os Kaiabi também se empenharam muito na luta pela demarcação e preservação do Parque, junto aos irmãos Vilas Boas.

Os Kaiabi falam português, conhecem nossos costumes e nossos modo de viver. Eles tem uma cultura rica que conheci superficialmente mas nela não existe teatro.

A dança é uma feita em coletivo, um grande corpo que se move com muitos pés que batem o ritmo no chão. O canto tem uma harmonia diferente e melodias que revelam uma grande espiritualidade. Mas sempre cantado em grupo. As letras trazem força, ou evocam os antepassados, ou estão em função de alguma situação que se vive no presente.

A Pintura corporal e assim como os adornos são formas mais individualizados de expressão.

Existem contadores de história mas eu não vi nenhum em ação.

Hoje em dia alguns cursos de formação em Saúde e Educação utilizam o teatro improvisado como ferramenta didática.

Mas nada de teatro.

Enfim eles se mostraram muito interessado em cinema. Já tiveram notícia ou mesmo experiência com essa linguagem tendo sido objeto de alguns documentários que segundo eles disseram não chegaram a ver. Isso é uma fonte de mágoa e desconfiança.

Apesar disso eles se mostrarem receptivos, atentos e disponíveis.

Os participantes desta oficina haviam sido pré-selecionados por meio de testes realizados pelo Chico Accioly. Um experiente produtor de elenco que foi visitar as aldeias de barco durante semanas, convencendo caciques e pessoas a se prestarem a simplesmente contarem uma história para uma pessoa imaginária.

Das quatrocentas pessoas testadas chegamos a um grupo de quase 50. Que seriam o elenco de apoio, aquele grupo que poderia a qualquer momento estar interagindo com os principais. Entre essas pessoas também precisávamos encontrar um elenco principal kaiabi para estarem constantemente em cena com os principais brancos.

Escolhemos nove que virão para Canarana para uma outra oficina mais curta para que possamos definir esse elenco.

Isso é um resumo do trabalho.

Essa foi a primeira vez que trabalhei num lugar onde eu não entendia a língua local mas as pessoas falavam a minha língua.

As diferenças são óbvias. O Xinguano vive do que a terra lhe oferece e daquilo que consegue plantar. Dinheiro, economia… possuir não tem nenhum grande valor. Aqui não se vive para o futuro, se vive para o presente e para a coletividade. A vantagem de quem vive no Xingu é que ele tem uma certa distância do mundo em que nós vivemos que se estrutura na posse, no acúmulo como meta de vida. Nem que aquilo que se acumule seja só informação, títulos, feitos, obras…

Conforme me explicaram o Kaiabi quando morre quer tudo que é dele seja queimado para a sua pessoa não seja lembrado. Ele quer partir sem levar nada.

Isso é muito diferente para nós que não queremos abrir mão de nada e ainda pensamos em deixar alguma coisa para nossos descendentes.

Mas como resolver a questão de fazerem entender que o que fazemos como arte é abstração. É uma manifestação do indivíduo, da sua necessidade de expressar a sua sensibilidade…

Enfim tenho muito o que pensar mas enquanto isso vou resolvendo problemas.

O curso se desenvolveu de maneira muito fluída. Quando pus eles para criarem, fizeram bem. Quando mostrei o material gravado eles souberam ver os acertos e os erros. Se prontificando a acertar.

Isso é o que importa agora.

O grande desafio deste trabalho ( e desta produção) é a comunicação.


A Diversidade

O que fazer quando se está numa sala de aula e quatro línguas são faladas sendo que a sua língua não é a língua materna dos alunos? Mas ao mesmo tempo entre eles há uma distância linguística e cultural. Todos Brasileiros… mas de etnias diferentes.

Eu nunca me senti tão estrangeiro quanto nesses últimos dias.

Tive com pessoas de diversas etnias: Suiá, Ylapeti, Kuikuro, Kaiabi-Suiá, Trumai

Aqui no Xingu o sobrenome das pessoas é a mesma da etnia.

Esse termo índio que se usa generalizando povos, costumes, traços físicos é totalmente equivocado.

Facilita e eles mesmos usam como forma de agregar todos os que tem a sua origem nesse solo, nesse pedaço de chão que um branco batizou de Brasil.

O Xingu com sua diversidade é um país dentro do nosso país. Não tem autonomia de um país constituído mas tem a dimensão e a complexidade de um. Tudo lá precisa ser gerenciado, os recursos naturais, a água, o peixe, a caça, o espaço físico, as fronteiras…

O Xingu é um país que não tem moeda própria.

Hoje me explicaram que um colar de casca de caramujo, que é muito lindo, tem um valor muito grande tal como o dinheiro para nós. Por que é muito difícil ter o material para fazer e muito difícil de trabalhar com esse material. Ao mesmo tempo me disseram que o dinheiro que eles conseguem aqui fora com a gente fica aqui mesmo pois é para comprar coisas para levar para lá.

Lá dentro se faz troca. Troquei uma lanterna por um colar. As meninas trocam sutiãs por pulseiras, cintos… O adorno tem um valor enorme.

A Troca é um sistema econômico que existiu a muito tempo atrás antes de inventar o dinheiro. Por coincidência hoje em alguns países de primeiro mundo existem redes de troca de coisas e serviços que surgiram como alternativa para quem não quer ou não tem dinheiro para gastar. Ou seja a evolução de uma proposta nem sempre é uma idéia nova. O Tempo é circular.

A relação com as crianças é incrível. Elas são muito obedientes mas ao mesmo tempo livres. As brincadeiras são pescar, caçar pequenos animais, fazer flechas mas todos obedecem os pais sem muita discussão. Eu não vi nenhuma criança apanhar. Tampouco vi nenhuma fazer malcriação. Os pais ficam em cima e há um controle social feito pela comunidade. As crianças tem brinquedos industrializados mas não em  muita quantidade. E como não há televisão o tempo todo não há estimulo para o consumo infantil.

Uma coisa que me disseram que se algum jovem pegar algo que não é seu e um velho ver. O jovem vai para a reclusão. Não existe polícia.

Quando eu quis exemplificar situações de conflito me deparei com o fato de que eu desconheço os valores daquelas pessoas.

Pensando mais um pouco eu acredito que a falta de valores é um dos fatores que geram tanta neurose e violência nas relações urbanas. No final a competividade, a agressividade, a produtividade, o consumo, são os valores comuns na sociedade onde eu vivo. Enquanto nas aldeias é a harmonia, a convivência, a manutenção de um modo de viver seriam seus valores. Imagino que entre a população das aldeias deve existir um questionamento, principalmente quando são confrontados com a tecnologia do mundo dos brancos. Imagino que eles devem ficar bem divididos entre aderir a nossa máquina de louco ou se manter onde estão.

O que eu tenho pensado que chegamos ao final da linha e acreditamos muito que só o avanço tecnológico seria o suficiente para nos tornar mais felizes.

Nem um nem outro.

Eu não sei se quero trocar de vida com meus alunos mas me alegro com esse questionamento saudável que me faço agora.

Amanhã vou começar uma oficina com os Kalapalos. Que é uma etnia do Alto Xingu (apesar de que o Alto fica mais ao sul e o Baixo mais ao norte perto do Pará) Eles são próximos dos Kuikuros e falam uma língua similar. O que não vai refrescar nem um pouco por que as poucas palavras que aprendi, esqueci.

Os nomes são lindos mas também não guardo.

Ontem ouvimos uma história sobre a Deusa Sol que é a mãe do índios e das pessoas. Pro índio ela deu uma panela de barro. Pro branco ela deu uma grande panela de aço. Pro índio ela deu o arco e a flecha pro branco ela deu a espingarda.

Dá para interpretar de muitas maneiras.

O Parque do Xingu só tem 50 anos mas a relação entre índios e brancos tem mais de 500.  E boa parte dela marcada pelos traços da pólvora. O legado da colonização ainda existe. Mesmo se queremos esquecer ou coloca-la num passado distante. Por que até os anos setenta existia o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) que promovia a vinda de colonos para ocupar a região Centro Oeste e o Norte do país ignorando completamente a ocupação já existente.

Eu sei pelo Chico Accioly que os primeiros encontros nas aldeias foram marcados por discursos reclamando e rejeitando a presença deles ali. Mas que depois ia se abrandando até chegar a cooperação.

Essa história foi reforçado pelo pessoal que trabalha no Instituto Sócio-Ambiental que passaram pelos mesmo cerimonial de recepção nas suas primeiras idas a aldeias.

É uma espécie de aviso e descarrego por que a relação com os brancos sempre foi marcado por sacanagem e interesses econômicos onde o resultado é que o índio ficava com menos.

A manutenção de um Parque tão grande numa área em que o solo é rico, o que representa um valor econômico grande é um esforço. Ela depende da boa vontade de quem está no governo. O que é lamentável.

A grande lição desse trabalho tem sido a discussão sobre valores e não mais sobre Política. Já que com valores fracos não há uma Política que possa existir apenas manobras e disputas entre grupos.

Enfim de novo me perdi em divagações.


Delicado

Eu tenho feito filmes que tem tocado temas sociais.

Feridas abertas com atores que sentem na pele o que é.

Esse aqui não é diferente.

Os povos indígenas sofrem com a ocupação feita à força de suas terras e pouco se dá atenção para o tema.

Enfim nada de novo.

Mesmo por que faltam propostas para a sociedade brasileira que só está preocupado que não falte um carro na sua garagem, já passamos da fase que não falte comida.

Comemos mal mas comemos melhor que muita gente mundo à fora. Graças a nossa agricultura. Graças ao desenvolvimento feito a qualquer custo. Enfim a história se repete.

Daqui de Palmas trabalho pela Paz.

Justiça é algo bem mais dinâmico que os nossos julgamentos.

Aliás nossos julgamentos são muitas vezes uma justificativa para não fazermos justiça, não trabalharmos por melhores condições e ficarmos na apatia. Exprimindo opiniões sem se dar conta de que elas apenas poluem o ar. Melhor é aprender a respirar.


De volta a SP

Foi uma aventura essa última semana de preparação. No meio do Jalapão. Cercado de atores experientes e também inexperientes. Para mim é difícil falar de não-ator. Como é difícil falar em não atuar. Para mim são todos atores. Alguns seguem fazendo isso outros não. Alguns se aprofundam, se reciclam e se aperfeiçoam. Outros não. Alguns batalham muito para conseguir espaço. Outros já conquistaram e batalham para conseguir continuar.
Emocionante foi me despedir dos meus amigos do Xingu. Os povos indígenas são muito especiais. Aprendi muito com eles.
Abrir os olhos para ver algo diferente é bom.
Ter sucesso é uma questão de ponto de vista.
Ter prazer é algo muito especial.
O que vi neles foi um prazer enorme em viver. E não confundir com satisfação ou passividade.
Para fazer uma festa só precisa cantar e dançar.
A vida na aldeia é celebrada em cada detalhe. Tudo é um grande ritual.

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